Hb AS ou Traço Falcêmico

Autor: Paulo Cesar Naoum

O traço falciforme caracteriza o portador assintomático, laboratorialmente representado pela associação das hemoglobinas A e S, ou Hb AS. A concentração da Hb S no traço falciforme é sempre menor que da Hb A, variando entre 30 e 40%. Eventualmente, quando associado com anemia ferropriva ou talassemia alfa, a concentração da Hb S pode se situar abaixo de 30%. Pelo fato da menor concentração da Hb S em relação à da Hb A, o portador heterozigoto não padece da doença e não apresenta alterações hematológicas.
Os processos vaso-oclusivos sob condições fisiológicas normais inexistem, e, portanto, não há mortalidade e nem morbidades seletivas.  Geralmente detecta-se o portador de Hb AS em estudos populacionais e pré-natal, ou em análises de familiares com membros portadores do gene da Hb S. No Brasil a prevalência média de Hb AS é próxima de 2,0% na população total, entretanto se considerarmos somente pessoas de cor negra a prevalência média é por volta de 5%, com grandes diferenças regionais, por exemplo os estados da Bahia e Rio de Janeiro tem prevalência acima de 5% enquanto os estados do Paraná e Santa Catarina é menor que 2%. Entre pessoas de cor branca a prevalência média de Hb AS é variável entre 0,5 e 1,3%, evidenciando a representativa miscigenação branco-negra da população brasileira.
Geneticamente a condição heterozigota se deve à herança do gene da globina bS por parte de um dos pais, juntamente com gene da globina bA proveniente do outro. Em nossa população as formas mais comuns de transmissão do gene bS para o traço falciforme se deve aos seguintes genótipos dos pais, por ordem decrescente de frequência: AS x AA; AS x AS; SS x AA; SC x AA; S/b Tal x AA.
A deficiência de G-6PD associada à Hb AS em geral não acrescenta morbidade às já porventura preexistentes, entretanto foram relatados casos com maior incidência de hematúria e embolia pulmonar, além de discreto grau de anemia associada à presença intraeritrocitária de corpos de Heinz.
A interação entre Hb AS com talassemia alfa de um ou dois genes afetados pode ser identificada pela presença de Hb H com concentrações variáveis entre 0,5 a 5%, além das hemoglobinas A2, S e A;  nesses casos é comum a diminuição da concentração da Hb S. Hematologicamente, os valores hematimétricos se situam na faixa menor dos valores de normalidade, porém é comum a presença de discreto grau de aniso-poiquilocitose no esfregaço sangüíneo. A interação de Hb AS com a doença de Hb H é uma situação extremamente rara, que apresenta a concentração da Hb H variável entre 10 e 20%, a Hb S entre 15 e 20%, e  a  Hb A2 visivelmente diminuída. Nesses casos a anemia é moderada a grave (Hb: 7 a 10 g/dl), com intensas alterações na morfologia eritrocitária, e precipitados de Hb H facilmente identificáveis após incubação do sangue em solução de azul crezil brilhante (figura 6.35).


Figura 6.35 – Precipitados  de Hb H na doença de Hb H, após incubação do sangue  total  misturado com azul de crezil brilhante a 37ºC/1 hora. Na associação da Hb AS com doença de Hb H é possível obter resultados similares ao desta figura.

 

 

 A tabela 6.8 resume as principais avaliações hematimétricas na interação entre Hb AS/talassemia alfa.

Tabela 6.8 – Relação  entre  genótipos  de  talassemia  associados  à  Hb AS (Hb AS/tal alfa) com as alterações hematimétricas.


Genótipo

Hb (g/dl)

VCM

%Hb S

% Hb H

AS; aa / aa

13 –15

77 – 92

30 – 40

 – 

AS; a - / aa

11 – 15

75 – 85

30 – 40

0,5 – 1,0

AS; a - / a -

11 – 13

70 – 75

20 – 30

2,0 – 5,0

AS; a - / - - (*)

7 – 10

60 – 70

15 – 20

10,0 – 20,0

(*) Doença de Hb H

 

O diagnóstico laboratorial é feito por técnicas eletroforéticas em pH alcalino (figura 6.36) e pH ácido (figura 6.37), que associadas permitem a caracterização dos genótipos de S, e em especial da Hb AS. Com o uso de gradiente de pH apropriado, a eletroforese de focalização isoelétrica também identifica a Hb S em seus diversos genótipos (figura 6.38). Outros testes que apenas detectam a presença de Hb S, sem identificar o seu genótipo (AS, SS, SC, etc.), são os testes de falcização e de solubilidade.

 

Figura 6.36 – Eletroforese alcalina de hemoglobinas em gel de agarose. Diferenciação da mobilidade eletroforética dos genótipos SC, SF e AS. Os traços de Hb A nos genótipos SC e SF se devem ao sangue transfundido em ambos os pacientes que cederam as amostras de sangue para análise.

 

 

Figura 6.37 – Eletroforese ácida de hemoglobinas em gel de agarose. (1) Hb ASF em sangue de recém-nascido; (2) Hb AS; (3) Hb AA. Devido ao processo físico-químico de eletroendosmose a Hb Fetal migra com maior rapidez que a Hb A.

 

 

 

 Figura 6.38 – Eletroforese de focalização isoelétrica (isoeletrofocalização) em gel de agarose. Fracionamento inferior: pool de hemoglobinas A, F, S e C. Fracionamento superior: Hb AS. Por meio da isoeletrofocalização é possível obter fracionamentos de hemoglobinas com excelente nitidez, além de diferenciar as mobilidades das hemoglobinas S e D. 

     
 
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